Foi
numa reunião da Sociedade Missionária dos Morávios que Wesley em 24 de maio de
1738, precisamente na rua Aldersgate, teve a experiência de sentir seu coração
aquecido de modo estranho; dizia ele: “Meu coração aqueceu-se estranhamente, e
fiquei sabendo que os meus pecados, os meus próprios, tinham sido perdoados”.
(LLOYD-JONES, 1998. p. 209)[1].
Wesleianos apaixonados consideram esta sua experiência como o marco de
sua peregrinação espiritual; coincidente com o pós-divórcio e com a crise
profunda deste ícone do panteão dos
grandes heróis pós-atos, nas palavras de Ricardo Gondim, pastor da
Assembleia de Deus Betesda[2];
no entanto, sua crise eclesial e doméstica tem sido ignorada pelos defensores
de posições, que supervalorizam a experiência mística deste avivalista do
século XVIII.
Wesley até 1735 passava por dias de crise e de abatimento, não encontrava
o sentido existencial de sua missão; amargava o seu divórcio, sua insatisfação
com sua igreja e com suas dúvidas quanto ao básico da fé. No entanto, este
homem terrivelmente confuso e emocionalmente desequilibrado teria encontrado
refúgio para sua alma transtornada e aflita em Jesus Cristo.
Gondim também nos informa que em 14 de
outubro de 1735 Wesley fracassou na tentativa de evangelizar os índios da
Geórgia. Numa carta escrita a bordo do navio Simmonds, ele revela seu estado de
perturbação: “Em vão tenho fugido de mim para a América. Ainda choro sob o
intolerável peso de minha miséria. Se ainda não me arrependi deste projeto é
porque nada espero da Inglaterra ou do paraíso. Aonde eu for levarei o inferno
comigo”. Ainda a bordo do Simmonds conheceu o segundo líder dos morávios,
August Gottlieb Spangenberg. Ricardo Gondim escreveu no mesmo artigo este
diálogo:
Quando pediu ajuda sobre
a sua obra missionária, Spangenberg foi direto na jugular: “O Espírito de Deus
testifica a seu espírito que você é filho de Deus?” Wesley se espantou com a
linguagem direta e sem rodeios do outro missionário. Spangenberg continuou como
numa rajada de metralhadora: “Você conhece Jesus Cristo?” Wesley engasgou: “Sei
que Ele é o Salvador do mundo”. A hesitação de Wesley chegava a ser vergonhosa:
“Espero que Ele tenha morrido para me salvar”. Spangenberg pressionava com a
mesma intensidade: “Você sabe disso com certeza?” Sem coragem para falar Wesley
apenas resmungou: “Sei sim”. Anos depois, confessou em seu diário que aquele
“sei, sim” foram palavras vãs.
Essas palavras não foram para Spangenberg novas ou improvisadas; ele seguia
o padrão morávio o método de como se deviam interrogar, catequizar e examinar
rigorosamente as pessoas a serem agregadas nas sociedades, seguindo as
orientações de William Williams. Essa experiência de Wesley não era esperada de
um cristão amadurecido, mesmo por William: “Às vezes vocês vão ter um choque ao
verem que as primeiras experiências das pessoas são muito melhores do que as
experiências posteriores”.
O histórico dia 24 de maio de 1738 teria sido o dia que Wesley nasceu
como verdadeiro filho de Deus, apesar de que, Wesley já tinha sido ordenado
Ministro e estava envolvido em contendas e disputas na Igreja Anglicana. Os
dias de Wesley antes da experiência do coração aquecido, não foram dias de um cristão
convertido em busca de uma Segunda Benção, mas, o dia em que Wesley creu no
evangelho e foi selado com o Espírito Santo, ainda que seu testemunho tenha
servido equivocadamente à doutrina da Segunda Benção.
A experiência coletiva nas reuniões destes grupos morávios que
influenciaram John Wesley, a sua própria experiência nessas reuniões, seguiam
métodos já utilizados por grupos similares que se ocupam da experiência
mística.
Os acontecimentos que se seguiram podem ser considerados no mínimo de
bom alvitre, por exemplo: assumiu que Jesus era realmente o seu Salvador;
renunciou sua própria justiça para sua Salvação; consequentemente, tornou-se
dependente de Cristo; passou a viver uma vida de oração constante; passou a ter
paixão pela evangelização.
As experiências estranhas: do coração aquecido de Wesley e das sociedades
dos morávios, assim como, a experiência das tremedeiras dos corpos dos Quakers
(tremedores), ainda que sejam apontadas como segundas bênçãos do Espírito Santo,
não devem ser apresentadas como modelos, tampouco deve ser norma para
evidenciar uma vida no Espírito. O que evidencia uma vida no Espírito Santo é a
obediência à Palavra de Deus; a Palavra de Deus que deve moldar a nossa
experiência, a nossa maneira de cultuar e de viver. Isso pode ser observado na
vida de Wesley e de George Fox (líder dos Quakers que enfatizava a experiência
da tremedeira do corpo), apesar de que os rumos da teologia desses grupos não
se tornaram referências. E por que não? Ora, porque a Igreja da Inglaterra era
totalmente contaminada pela heresia arminiana naquele tempo, naquela região, tal
como afirma D. M. Lloyd Jones:
A família de Wesley, pai
e mãe, tinham-se tornados arminianos, e se orgulhavam disso. Não só isso; há
uma interessante prova apresentada pelo professor Geoffrey Nuttall que mostra
que o arminianismo estivera particularmente em voga na aldeia de Epworth, onde
viveram os Wesley. Assim, eles tinham sido criados e educados numa atmosfera
inteiramente arminiana. (LLOYD-JONES, p. 212).
Pelo menos em Gales, acrescenta o Dr Lloyd-Jones, os cristãos eram
totalmente calvinistas. Os metodistas, depois de algum tempo que chegaram a
Gales, se tornaram calvinistas. Foi o que aconteceu com Whitefield, Rowland e
Harris; foi o estudo que eles fizeram dos trinta e nove artigos e dos puritanos
que os levaram a essa posição. Tornaram se calvinistas e continuaram sendo
calvinistas até o final de suas vidas; estes influenciaram a maior parte dos
metodistas.
Os discípulos no caminho de Emaús estiveram com Jesus depois da
ressurreição (O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS, 24.13-53 In Bíblia Sagrada, 1988, pp. 943-944), depois que o reconheceram,
comentava-se: “porventura não nos ardia o coração quando Ele nos ensinava as
Escrituras?” (1988, p. 944). O reverendo A. Skevington Wood[3],
pastor da Igreja Metodista de Southlands em York, na Inglaterra, escreveu em
seu artigo, no qual Ricardo Gondim se baseou: John Wesley aconselhou seus
evangelistas: “nunca aceitem nada sem testar... Não creiam em nada que não tenha
sido claramente confirmado nas Escrituras.”
Indiscutível, portanto, que Wesley possa ser considerado um grande
referencial evangélico de fé, santidade e de compromisso com o reino de Deus;
mesmo que não tivesse a experiência mística do coração aquecido em sua
conversão, não deixaria de ser considerado pelo fato de ter obedecido à Palavra
de Deus à exortação: “provai os espíritos se procedem de Deus” (PRIMEIRA
EPÍSTOLA DE JOÃO, 4.1 In Bíblia Sagrada, 1988,
p. 1103) e ao exemplo dos crentes de Beréia (ATOS DOS APÓSTOLOS, 17.10-14 In Bíblia Sagrada, 1988, p.992).
Assim como os discípulos no caminho de Emaús Wesley, Whitefield, Rowland,
Harris e Skevington Wood tiveram a desejável “experiência do coração aquecido” não de forma estranha, mas pelo
exame das Escrituras. Eles reconheceram a autoridade e a verdade da Palavra de
Deus a ponto de poder repetir: “porventura não nos ardia o coração quando Ele
nos ensinava as Escrituras?” (O EVANGELHO SEGUNDO LUCAS, 24.32 In Bíblia Sagrada, 1988, p. 944).
Atribui-se a Wesley o imerecido título de precursor do movimento
pentecostal, uma vez que o metodismo e o pentecostalismo, ainda em um nível
mais elevado o neopentecostalismos na atualidade estejam tão distanciados dele,
tanto pela secularização quanto pelo liberalismo teológico. Este precursor do
pentecostalismo reconhecido pela história por sua paixão evangelística, seus
sermões e sua ótica social exerce pouca, ou nenhuma influência nos movimentos e
nas teologias dos tempos pós-modernos, mesmo tendo oferecido inicialmente o
arcabouço teológico que inspirou os movimentos pentecostais no inicio do século
XX na formulação da doutrina da segunda benção, particularmente evidenciada
pelo sentir algo ou manifestar algo “estranho” ou “sobrenatural”, como por
exemplo, o que foi considerado depois como segunda benção: o Batismo no
Espírito Santo com evidência de línguas (também) estranhas.
Certa vez Wesley disse: “Meu chão é a Bíblia”, e ainda: “Eu sigo a Bíblia
em todos os assuntos, grandes ou pequenos, ela é a pedra de apoio em que os
cristãos examinam todas as revelações, reais ou supostas”.
A primeira geração de metodistas era de homens comprometidos com a
santidade, sem, jamais, esquecerem a Graça; afirmando os postulados da Reforma Sola
Gratia, Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus e Soli Deo Gloriae. John
Wesley fez um sermão em Oxford, no qual afirmou:
A mesma Graça livre nos
concede hoje vida, respiração e tudo mais, pois não há nada que somos ou temos
ou fazemos que não provenha das mãos de Deus. ‘Todas as nossas obras, tu, ó
Deus, as fazes por nós’. Assim, elas são tantas outras manifestações de livre
misericórdia, e toda justiça encontrada no homem, será também dádiva de Deus.
Então, como o pecador fará expiação pelo menor de seus pecados? Com suas
próprias obras? Não, ainda que sejam muitas ou sejam santas, não provém deles,
mas, senão de Deus... Se, portanto, os pecadores acharem graça diante de Deus,
é ‘graça sobre graça’... ‘Pela Graça então sois salvos mediante a fé’. A Graça
é a fonte e a fé, a condição da Salvação.
O que vemos hoje é uma Igreja que se distancia da Reforma e também do
pensamento wesleyano, e retorna às velhas praticas pagãs que, incluem os
sacrifícios, penitências e boas obras,
para se alcançar o favor dos deuses ou de Deus, as quais sejam: bens materiais,
dons espirituais e a salvação.
Existe por parte dos homens um forte fascínio pelo fantástico, Theodore
Beza[4]
(1519-1605) escreveu:
(...)
fechemos as portas a todas estas fantásticas noções que o diabo tem usado, em
todas as épocas, para corromper o homem. E então ouvimos o Evangelho exposto e
pregado de maneira adequada e própria, de forma a entender melhor a sua
substância (Rm 10.8; 1Pe 1.25) e colocá-lo no coração onde, pela fé, ele pode
produzir os frutos verdadeiros do arrependimento (Mt 13.23; At 16.14).
Os líderes que se arrogam avivados e espirituais ensinam técnicas de
oração e campanhas para se receberem de Deus bênçãos diversas. Explicam como
buscar dons espetaculares e prosperidade material, mas, não pregam a
justificação de pecadores pela Graça. Wesley, no entanto, foi um homem que
pregou a Graça apaixonadamente, amou os pobres e se empenhou para viver em
santidade, apesar de ter corroborado para o desenvolvimento da doutrina
antibíblica da segunda benção.
Os movimentos evangélicos de nosso tempo precisam redescobrir o legado de
homens do passado que pregavam e viviam a Palavra de Deus, deixando de lado o
mau testemunho dos coríntios, de se deleitarem em ouvir línguas estranhas, sem
que algum profeta, interpretasse ou explicasse o que estava sendo dito (PRIMEIRA
EPÍSTOLA DE PAULO AOS CORÍNTIOS, 14.1-19 In
Bíblia Sagrada, 1988, p. 1033). Ainda segue o que foi dito por Beza:
...como
crerão sem que ouçam, tendo em vista que a fé vem pelo ouvir, como o apóstolo
Paulo diz em Rm 10.17? E como ouvirão quando, longe de ser exposto
propriamente, é cantando em língua estranha (1Co 14.19, 16-28)? Também como que
alguém pode ser fundamentado na santa e verdadeira doutrina, confortado entre
tantas e variadas tentações, advertindo a opor-se a falsas doutrinas (Rm 15.4;
2Tm 3.16), sem meditar dia e noite na Palavra de Deus e examinar cuidadosamente
as passagens da Santa Escritura (At 17.11; Jo 5.39)?
Muitos homens de Deus nunca estiveram em transe ou em qualquer estado de
êxtase ou de inconsciência, nunca falaram línguas sem ter sido aprendida, nunca
tiveram visões, sonhos, ou arrebatamentos, ou a experiência do calor no
coração, ou da tremedeira, ou qualquer outra experiência estranha da forma que
muitos testemunham, no entanto, traduziram a Escritura para ser lida e
compreendida por todos os homens e mulheres, para experimentarem o que os
discípulos experimentaram em Emaús, diante da exposição das Escrituras,
“porventura não nos ardia o coração quando Ele nos expunha as Escrituras” e “se
lhes abriram os olhos”. Essas expressões encontradas no relato de Lucas 24 são
metafóricas, e, significam, portanto, que as Escrituras alcançaram os seus
corações, trazendo-lhes pela compreensão, o entusiasmo e a alegria para
proclamarem o que se cumpriu e o que ainda vai se cumprir, o que as Escrituras
dizem a respeito do nosso Senhor Jesus Cristo.
A experiência do coração aquecido de Wesley teria sido vã e inútil, tanto
quanto desprovida de significado se o seu coração se esfriasse para a Palavra
de Deus ao se aquecer numa experiência mística. A experiência desse missionário
nas reuniões dos morávios pode ter sido momentânea, mas o nosso coração precisa
permanecer aquecido pela Palavra de Deus para sempre.
A segunda bênção que devemos buscar
evidencia uma vida plena do Espírito Santo; é uma vida de obediência à Palavra
de Deus: a nossa experiência, a nossa maneira de cultuar, a nossa maneira de
viver; o modelo de obediência deve ser observado na vida de Jesus Cristo, do
qual devemos ser imitadores.
[1]
LLOYD-JONES, D. M., Os Puritanos: Sua Origem e Seus Sucessores. Ed.
PES. São Paulo. 1998.
[2]
Narrativa de Ricardo Gondim no Artigo: Procuram-se evangelistas com o
coração aquecido para a Revista Ultimato; GONDIM, Ricardo, Artigo: Procuram-se
evangelistas com o coração aquecido. Revista Ultimato Edição 274, Editora
Ultimato Ltda. São Paulo. 2002.
[3] Fonte: The
Burning Heart-John Wesley: Evangelist, Bethany Fellowship, 1978; citada no
artigo de Ricardo Gondim para Ultimato.
[4]
Theodore Beza ocupou a primeira cadeira de Grego em 1558 e foi o sucessor de
Calvino na cadeira de Teologia da Academia de Genebra. Esta citação é uma
transcrição do artigo do capítulo 4 (seções 22-23) de seu livro The Chistian Faith (A Fé Cristã), o qual
foi best seller durante a Reforma
Protestante, publicado em 1558 sob o título Confession
De Foi Du Chretien (Confissão de Fé do Cristão).
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