Espiritualidade
Por Ricardo Barbosa de Sousa*
Muitos acreditam que aquilo que pode dar algum significado e alguma satisfação para a vida encontra-se no futuro, quando finalmente conseguirão realizar aquele sonho ou projeto ou, quem sabe, alcançar aquele nível de felicidade e paz tão desejadas. Olhamos sempre para frente, nunca para trás. Assim a humanidade caminha ansiosa e insegura, na esperança de que alguma coisa que ainda não aconteceu nos traga aquela felicidade e realização tão sonhadas. No entanto, a segurança e a felicidade dependem muito mais do passado do que imaginamos.
Os primeiros três capítulos da Carta de Paulo aos Efésios apresentam uma longa lista de “bênçãos já realizadas”. Todos os verbos estão no passado: “Nos tem abençoado”; “nos escolheu”; “nos predestinou”; “nos concedeu”; “nos deu vida”; “nos ressuscitou” etc. Paulo lembra seus leitores daquilo que já aconteceu. A resposta ao que eles buscavam não estava no futuro, mas no passado.
O problema é que agimos como se tudo o que importa estivesse por vir. Nossa experiência espiritual é frágil porque não tem memória. Por isso, os profetas e escritores bíblicos procuravam sempre lembrar o povo do passado, porque, como disse C. S. Lewis, “é mais fácil refrescar a memória das pessoas do que enchê-las com novidades”. O conceito de aliança na Bíblia apresenta um princípio de relacionamento em que o presente e o futuro são definidos pelo passado. Aliança não diz respeito a algo novo que podemos receber, mas à certeza daquilo que já recebemos.
O princípio da aliança que Deus fez com o seu povo no Sinai é resumido na declaração divina: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Este é o fato, o princípio. Isso não pode ser esquecido. Tudo o mais é construído sobre este fato. Jesus disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue”. Algo foi realizado na cruz de uma vez por todas. Todo o relacionamento com Deus e com o próximo nasce e se sustenta sobre este alicerce.
Toda vez em que celebramos a eucaristia reafirmamos um fato e vivemos a partir dele. Não criamos nada, não há nada a acrescentar. A iniciativa é de Deus e sustentada por ele. Deus não nos impõe condições para entrarmos nessa vida abençoada. Precisamos apenas crer nela, aceitá-la e participar da realidade para a qual ela nos convida.
A memória preserva a aliança. A memória que tenho no dia do meu casamento e das promessas que fizemos a Deus, como expressão do nosso amor, definiram o nosso futuro. Nossa identidade conjugal foi definida ali. Passamos por momentos difíceis, crises, ajustes, mudanças, mas nunca duvidamos de que a aliança que fizemos foi para toda a vida. Éramos jovens, não tínhamos a menor ideia do que ia acontecer conosco no futuro. No entanto, não olhávamos para o futuro com ansiedade. Nossa aliança não dependia dele. Ela já estava feita. Foi ela que nos ofereceu um ambiente seguro para vivermos nossas experiências e crescermos juntos.
A experiência espiritual não é diferente. Paulo não tinha a menor ideia do que iria acontecer com ele depois que ouviu a voz de Cristo no caminho para Damasco. No entanto, ele nunca deixou de se lembrar daquela voz. O que Cristo fez na cruz o trouxe para dentro de uma realidade completamente nova. A vida, os interesses, os valores e os projetos de Paulo foram reorientados a partir dessa nova realidade. O futuro dele estava seguro. Pouco antes de morrer ele escreveu a Timóteo, seu filho na fé: “Porque sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia”.
*pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de, entre outros, A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja. (in ULTIMATO - Novembro-Dezembro, 2014, p. 32).